A visceral experiência de ser Rae Earl
- Mayane Humeniuk
- 12 de nov. de 2021
- 5 min de leitura
Atualizado: 23 de nov. de 2021
Protagonista de série e livros, Rae Earl é uma representação geral das lutas sociais e mentais da pessoa gorda.

Série de TV My Mad Fat Diary, distribuída pelo canal britânico E4
2021 começou difícil. Pandemia piorando, incertezas, peso para perder, hábitos para mudar, tempo demais em casa (só saindo para trabalhar!). Todo mundo precisa de distração…
Foi assim que eu revirei minhas memórias de prazer, entretenimento e representatividade. Não gosto de séries novas, não tenho Netflix, foda-se, vamos rever uma das poucas séries que você já assistiu? Vamos! Então eu redescobri My Mad Fat Diary.
Produção britânica de 2013 e com três temporadas, MMFD é o suco da série adolescente divertida e emocionante que TODO MUNDO deveria assistir… mas não é só isso. Baseada nos diários de Rae Earl — escritora que teve dois de seus escritos de adolescência publicados sob o nome de Meu Diário Louco e Gordo e Meu Diário Ainda Mais Louco e Gordo (chegaremos neles mais tarde) — a série apresenta uma Rae de 16 anos, no auge dos anos 1996, recém saída da ala psiquiátrica do hospital da cidade e cheia de vontade de viver e de namorar!
A esse ponto você já deve ter descoberto: ela é gorda. Nos diários originais de Rae, ela conta que durante seus 17 anos, tinha 92 quilos e 1,62 de altura. A atriz que a interpreta na série (Sharon Rooney), no entanto, parece ter muito mais, o que, sinceramente, é uma delícia. Rae vive coisas divertidíssimas, assim como coisas muito tristes e, embalada por uma soundtrack cheia de britpop e eletrônica dos anos 90, ela vive um romance.
Grunge is dead (o Grunge está morto). Seu namorado (eles meio que se odeiam no começo) é um menino magro, bonito — SUPER bonito, mas aí é questão de gosto! — e cheio de marra. A frase do começo do parágrafo é a que ele estampa na camiseta usada em um dos episódios, bem no meio dos anos 1996 — meio cruel, já que Kurt Cobain, o maior nome do grunge, havia morrido dois anos antes!
Eu não vou dizer o nome do nosso mocinho, vai ser fácil descobrir assim que você começar a assistir, mas o elemento surpresa é divertido. Além do namorado bonito, compreensivo e louco por ela, Rae também possui uma gangue de amigos do peito, daqueles com quem você pode contar para tudo.

Sua ansiedade e baixa auto estima, no entanto, sempre estão lá para estragar tudo quando ela tenta consertar as coisas. Ser gorda é para ela um peso difícil de carregar — e não falo do sentido físico. Ao se deparar com uma crise de pânico, ela come. Em público, não consegue comer. Eu sou bulímica sem a doença, Rae escreve em seu diário. Ela não gosta muito de si mesma, então se mutila… E se machuca de muitas outras formas.
Nem todos os que passam pela experiência de ser um adolescente gordo tem uma relação problemática com a comida, mas todos chegamos a um mesmo fim: o problema não é a comida, é a aparência. Quase toda pessoa gorda é insegura, é quase natural, logo, quase toda pessoa gorda sente essa mesma sensação em algum ponto da vida.
Durante sua trajetória pelas três temporadas, Rae sente coisas que eu pagaria para descobrir quem foi que resolveu tirar da minha cabeça e jogar lá! Toda pessoa gorda é um pouco Rae Earl, e só nós sabemos como é essa sensação que vai além de pressão estética. Ser gordo permeia todos os pedacinhos da sua vida, desde a forma com que você fala com as pessoas, até a forma como você assiste um filme. E às vezes, não há uma fuga do ser gordo.
Dias após terminar de assistir a série pela segunda vez (com muito luto e choro, ela podia ser eterna!), eu resolvi ler os dois diários de Rae. A Rae real, a que escreveu seus diários em 1989 e não em 1996, chegou a perder 40 quilos em uma dieta louca. Nunca deixou de se sentir como sempre. Gorda, não sensual, quase um garoto. Sempre esperando que seus problemas se resolvessem depois que emagrecesse. Spoiler: não se resolveram.
Essas três ótimas formas de se manter distraído — série e dois livros — te levam a um ponto de reflexão e representação difícil de desvendar. Eu mal sei quais caminhos seguir para apresentar tudo o que aprendi com essa experiência (e eu já estou no meio do texto!).
Vou destacar aqui então duas situações: a primeira, vinda da série e a segunda vinda dos livros.
Em certo ponto da série, Rae e sua gangue devem começar um tipo de “pré-faculdade”, onde eles estudam e buscam notas o suficiente para ir às universidades que desejam. Rae chega na instituição cheia de nervosismo e dúvidas, mas está tudo bem, já que seu namorado está ali segurando sua mão, certo? Errado! Eu não sei se isso acontece com todos nessa situação, mas a sensação que Rae sente nessa cena e durante vários momentos de seu namoro, eu conheço de perto.
Enquanto eles entram na instituição, ela percebe que as pessoas estão olhando. Eles olham. Ela está de mãos dadas com seu namorado, que situação estranha, constrangedora, existe uma disparidade tão grande na aparência deles e se as pessoas olham, elas julgam. É nesse momento que ela cai do penhasco em que esteve andando por toda a semana e dá de cara num ataque de pânico. Ela solta a mão do garoto e se afasta. Durante uma conversa com seu terapeuta, ela diz que se sente envergonhada pelo namorado, o que as pessoas devem pensar de um garoto tão bonito namorando uma garota tão feia?
Oras, que exagero, ela só é gorda…
É aí onde entra a questão do nosso tamanho interferir em cada pequeno pedaço da nossa vida.
A situação no livro, no entanto, tem um final ainda menos feliz. O rapaz com quem Rae namora na série também existe no livro, com um outro nome e outra atitude. Eles nunca chegaram a namorar.
Rae, no entanto, nutriu uma paixão por ele por pelo menos cinco anos, e ele, apesar de parecer muito corresponder em alguns momentos, também deixava veladamente claro que eles ficariam juntos se ela fosse mais sarada. Rae explica na introdução do primeiro livro que era difícil encontrar uma pessoa realmente gorda nos anos 80 e que ela era uma grande exceção em meio às garotas bonitas de Lincolnshire, inclusive a namorada de seu interesse amoroso.
No final, é isso, a vida real é mais dura que a ficção. Mas Rae se casou com um homem bom e que a motiva em tudo, e a série traz lições gostosas e dolorosas de assistir.
Essa é a minha resenha sincera e apaixonada sobre o diário de uma adolescente gorda, que foi uma criança gorda e virou uma mulher gorda. Com o tempo, as coisas se ajeitaram para ela, mas acompanhar seu crescimento não deixa de ser maravilhoso.
Abaixo, vão alguns links úteis, que vão te ajudar a conhecer essa história (e comentar ela comigo, por favor).
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